Artigo: Transcendendo os limites da educação

Artigo: Transcendendo os limites da educação

Por Mayan Maharishi

A educação é ponto de partida para o “O que queremos para o mundo?”. Sabe aquele anseio por caminharmos em direção a felicidade e essa felicidade envolve todas as pessoas? Sabe quando queremos o melhor pra nós e esse melhor é também o melhor para as outras, respeitando cada um e uma? Já sentiram a necessidade de agir no mundo para que todos e todas sejam e recebam o melhor? As crianças sempre falam disso! Elas são sábias, percebem a unidade. Falam em alto e bom tom que precisamos cuidar umas das outras e de tudo que nos rodeia. As crianças sabem a importância de uma educação significativa, que faz mover (1). 

Vamos refletir sobre a educação que atende a necessidade social, cultural e ambiental. Vamos refletir sobre a educação que nos separou, ao invés de unir. Vamos refletir sobre ambientes que não sejam opressores e que abracem o que realmente importa, a vida. Educadoras e educadores, mães e pais, familiares, crianças, todas nós precisamos pensar sobre que tipo de educação temos e/ou tivemos acesso. Podemos pensar quando ela criou marcas dolorosas, e quando foi inspiradora. 

Cotidianamente a qual educação estamos expostos? O tempo inteiro estamos diante de processos educativos. Temos os ambientes oficializados como “educacionais” embora essa seja uma relação que extrapola instituições e oficializações. Em um breve resumo histórico isso aconteceu desde que perdemos certa autonomia enquanto aprendizes e educadores de nossa própria aldeia, tribo, povo, nação. Digo “certa autonomia”, porque como falei, esses processos extrapolam um dado local ou modelo. 

No Brasil os processos educacionais sempre aconteceram entre as pessoas, já fomos milhões de etnias indígenas, com diferentes culturas, inúmeros processos educacionais, diversas línguas e saberes excepcionais. A educação foi por muito tempo negligenciada, primeiro desrespeitando os povos originários. Com a colonização um processo abrupto de catequização violenta disfarçado de educação, criou um abismo nos nossos conhecimentos ancestrais. Com resistência e resiliência parte desses processos permaneceram, mas diante de muitas violências vivenciadas, muito se perdeu.  Através de outras violências como a escravização houve a chegada de um novo povo, vindo de diferentes lugares de África, com outra cultura e processos educativos internos, que também sofreram com violências e descaracterizações abruptas, mas como os indígenas, resistiram e criaram sua resiliência histórica, porém muitas culturas foram afetadas e houve uma erosão cultural e identitária muito forte.  

Por séculos vivemos sobre violências diversas e uma anulação completa pela atenção ao povo do Brasil. Processos “educativos oficializados” eram para poucos, bem poucos. Quando houve algum movimento nesse sentido, foi ainda para muito pouca gente e para atender demandas de outros poucos em relação à formação de mão de obra. A educação é ainda uma conquista muito recente enquanto política pública, se pensarmos em todo o curso da história. É por isso um campo de grande disputa e conflitos.  A deseducação funcionou muito bem para oligarquias-impérios-colonizadores e posteriormente uma dada elite brasileira, praticarem suas violências sobre os “outros”, que na verdade não são apenas outros, mas sim a grande população brasileira. 

Nossa história vive ainda sobre a grande sombra da colonização e suas marcas violentas deixadas enquanto memória em nossa nação. Estamos ainda buscando o reconhecimento da nossa verdadeira história. Revendo as bases educacionais e o que realmente nos importa e liberta. Precisamos transcender os limites da educação. Liberdade é um conceito chave na nossa reflexão. Para isso é necessário entender que apenas na década de 1960 houve diretrizes e bases para a educação, mas logo sofreram intervenções com a ditadura. Depois da constituição de 1988 e após em 1990 ocorrer a Conferência Mundial de Educação, em que alguns direitos básicos foram alinhados e iniciou-se um processo por uma educação mais pluralizada e o caminho de uma democracia nacional.  Entre a década de 1980 e 1990, acontecem expressivas mudanças na educação, nas quais pensadores como Paulo Freire e políticas públicas, abrem um novo horizonte educacional no Brasil. 

Em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases é renovada, depois atualizada em 2008, e gera também significativa mudança nos parâmetros educacionais do país e o reconhecimento de nossas culturas plurais. Podemos ver como foi tardio e caminhamos devagar. A diversidade étnica deve ser respeitada, valorizada, representada e perpetuada para que todos tenham seu direito de ser no mundo, direito a sua manifestação pessoal e cultural.  As políticas públicas auxiliaram numa jornada pela democracia e pela garantia de investimentos na educação.  

Apesar de todas essas movimentações entre 80 e 90, muitas questões foram e ainda são conflituosas e emblemáticas quando falamos de educação no Brasil. Porém essas conquistas devem ser valorizadas e compreendidas enquanto passos importantes para uma educação de qualidade e pública no Brasil. Muitas garantias pelos direitos, bem pensadas, documentadas e que são hoje diretrizes e parâmetros, se fossem colocadas em práticas estaremos muito bem. O grande gargalo é que há outro abismo entre as leis e as práticas, outro fator é o acesso real à educação. 

Alguns pensadores e pensadoras das mais importantes como bell hooks, Paulo Freire, alertam sobre nossa necessidade e capacidade de transgredir, transgredir os muros, os limites, as falhas, as opressões.  Nosso propósito enquanto projeto se alinha com essa visão e busca o que chamamos de transcender limitações a partir de uma atuação engajada e comprometida, como alerta gentilmente bell hooks “a essencia dessa abordagem ao aprendizado é o pensamento crítico. Um estado de abertura radical axiste em qualquer situação de aprendizado em que os alunos e os professores comemoram sua capacidade de pensar criticamente, de se dedicar à praxis pedagogica.” hooks, p.267 

Tanto no contexto urbano quanto no rural há enfrentamentos reais até os dias de hoje. Porém tudo que foi conquistado refletiu de forma mais direta nos centros urbanos e aqueles mais marginalizados no campo brasileiro, os diferentes povos,  sentiram a necessidade de continuarem lutando por uma educação de qualidade inclusiva e por seu acesso.  Pouco representados nas formas e formatos educacionais, nos materiais didáticos disponibilizados, com acesso limitado a escolas por questões de distâncias e falta de estruturas ou por falta de reconhecimento de diferentes maneiras possíveis de escola/saberes, foi preciso uma articulação para que os processos se mostrassem diferentes e inclusivos. O movimento pela Educação do campo nasceu dessa necessidade de transgredir, transcender e fazer valer os direitos. (2)

As reflexões a seguir são reflexões que venho costurando desde a  minha formação na educação do campo na UFVJM, que se transformaram conjuntamente em debates levantados no meu trabalho de conclusão de curso de especialização em Ensino de Artes Visuais, na Belas Artes da UFMG, e volto a trazê-las aqui. (3)

 “O desafio e a necessidade da Educação do Campo têm como raiz histórica a política capitalista de homogeneização. Essa homogeneização surgiu para manter padrões sociais de interesse, que apagaram especificidades e diferenças para se estabelecer como modo de vida e prevalecer sobre outras maneiras de vida e visões de mundo, em favor dessa dominação. Tal prática capitalista fragilizou o campo no que diz respeito ao acesso e direito à educação, saúde, mobilidade, desenvolvimento cultural, econômico etc. E quem é habita o campo? Basta pensarmos o curso da história e nossas mazelas históricas para perceber que não é por acaso que o campo ficou por muito tempo aquém de das políticas educacionais e de outras mais em diferentes instâncias. 

Diante desses desafios emergem lutas sociais que visam mudanças e transformações que façam a diferença na vida dos campesinos. Uma série de organizações sociais percebem a grande necessidade e importância em se pensar e realizar uma educação que não seja somente para o campo, mas sim do campo, para o campo e no campo e se unem em busca dessa efetivação. Uma educação diferenciada para o campo que considera a realidade vivenciada e busca por seus direitos como sujeitos do campo e do mundo. Até então relegada a segundo plano em relação à educação nas cidades urbanas. 

Sob essa ótica cabe à Educação do Campo e educadores, compreenderem a instância em que se propõe atuar e ampliar o olhar para essas questões educacionais, sociais e culturais, a fim de não tornar as práticas educativas desintegradoras de saberes, mas sim uma prática dialógica, reflexiva e de experimentações.” Nossas práticas em nossa comunidade de educadores e educadoras audiovisuais “O que queremos para o mundo?”, e também as minhas enquanto educadora do campo, se alinham com esta forma e filosofia de atuação, pautada no respeito e na dignidade humana. 

“Na Educação do Campo o papel de educador não depende de um único espaço, ele pode ocorrer na escola, em uma associação local, em relações sociais etc. O educador no contexto do campo é aquele que, ao se deparar aos anseios alheios oferece a oportunidade para o outro rever a sua condição no mundo e dele mesmo rever a sua própria condição. Oferece oportunidade de trocar, de dialogar, de aprendizado mútuo, mas que está em consonância com a vivência que lhe é apresentada. 

Nesse sentido, as propostas educativas libertadoras têm o papel de auxiliar no processo de libertação de uma dada realidade, que pode ser modificada pelos sujeitos envolvidos em circunstância, situações e opressões. Para tanto, esse não é um processo que acontece uma única vez e pronto, a libertação se dá em momentos, ações e experiências. A Libertação, por sua vez, compreende a complexidade das relações sociais e problemáticas vivenciadas pelas comunidades em alguns momentos.  

Se pensarmos que o sujeito que tem autonomia alimentar ou que cria formas participativas de trabalho em grupos de produção local, que se agrupa para resolver questões da comunidade, está se libertando de algumas amarras do sistema capitalista, ele foge da lógica comum quando oportuniza a ação pensada. Porém, isso não acontece sempre e nem com todos os sujeitos, então não há plenitude, mas há um caminho, o passo de um pode modificar o passo do outro. Ocorre momentaneamente, mas altera os cenários e modifica os desafios. Ou seja, a libertação está presente na complexidade, porque os problemas muitas vezes se dão pela falta de ser liberto, de ter livre escolha. É tendo escolha que o processo educacional ocorre e é transcendente a qualquer metodologia pronta, por mais que tenha sido inspirada por alguma, pois é na escolha de uma comunidade, grupo ou educando, que surgem os processos autônomos, únicos, orgânicos e sistematizados.” (4) Angela Davis dá título em um de seus livros, que nos traz uma grande questão: A liberdade é uma luta constante.

Exemplificamos tomando como partida a Educação do Campo por eu ter uma vivência intrínseca com a mesma, mas a partir desses princípios comuns a educação do campo podemos pensar que diferentes formas que já foram preconizadas e que perpassam a autonomia, liberdade e o bem viver, poderíamos chamar de pedagogia da terra, pedagogia da liberdade, educação das aldeias, educação transformadora, educação para transgredir, educação contextualizada etc. 

Certamente vocês vivenciaram durante a jornada educativa de vocês, seja com família, comunidade, escola ou outro, tiveram marcas positivas e marcas negativas. Tirem um momento para reflexão sobre quais foram e como foram. Pense sobre as políticas públicas que impactaram seu desenvolvimento e acessos. Tente pensar sobre o que seria possível fazer para permitirmos e vivenciarmos uma educação para o bem viver. 

O que é necessário mudarmos com urgência e o que precisamos reparar com a igual urgência? Qual a essência dos processos educativos que nos marcam positivamente? Como a educação audiovisual poderia se espalhar na educação para promover novas formas de atuação dentro e fora da escola?   

Vamos pensar juntas sobre isso! Sermos engajadas é a parte importante desse processo que nos permite mudança e ação significativa no mundo em que somos ativas.

O professor facilitador de aprendizagens não é mais o dominador, como disse Paulo Freire, em relação à educação bancária (5), mas sim aquele que auxiliará adaptando recursos e iniciando reflexões. A pretensão é que pessoas educadas audiovisualmente e que pretendem transformar a linguagem audiovisual em recursos para o ensino-aprendizagem compreendam questões sociais e educacionais como um elo. Mas para que tudo isso aconteça é preciso também contínuas mudanças nos sistemas de formação que garantam essa capacidade aos educadores.  Nesse sentido “O que queremos para o mundo?” pretende ser esta Comunidade de aprendizagem mútua atenta às necessidades e à felicidade da nossa nação. As crianças são a chave desse movimento transformador, por entendermos que são grandes educadoras e que na nossa grande aldeia elas têm papel fundamental e ativo. É por isso que são a centralidade de nossa revolução nas telas e na vida cotidiana, somente com a participação ativa das crianças em união com diferentes gerações, será possível transcender os limites da educação. 

NOTAS DE RODAPÉ (CLIQUE E ACESSE NOVOS CONTEÚDOS):
(1)  a) Bem Viver Indígena – Educação – YouTube
b) A arte do Bem-Viver: Conversa com Kaká Werá – YouTube

(2) a) Célia Xakriabá – Culturas indígenas (2017) – YouTube
b) Saberes do Sagrado: cantos, orações e o fazer dos instrumentos – YouTube
c) Os Vales que Educam: 10 anos de alternâncias, autonomia e diálogos na Educação do Campo – eBooks Pedro & João Editores (pedroejoaoeditores.com)

(3) a) monografia__ltima_vers_o___mayan.pdf (ufmg.br) 
b) R.I UFVJM: Narrativas orais: saberes e fazeres da arquitetura vernácula na comunidade de São Gonçalo do Rio das Pedras (MG) e entorno
c) Video-Cartas Projeto – YouTube

(4)  ANGELA DAVIS | A liberdade é uma luta constante [tradução simultânea PT BR] – YouTube

(5) a) FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª Ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1987. 
b) (DUBLADO) Webinar – Tim Ingold em Imaginação: o jovem, o velho e a geração do agora – YouTube