Por que educar as emoções das crianças no mundo das telas?

Por que educar as emoções das crianças no mundo das telas?

Por Lídia Lino

Educar crianças para que elas sejam conscientes, felizes e responsáveis é um desafio relativamente novo para a sociedade contemporânea, embora este seja o desejo mais antigo e profundo de pais, mães e educadores das gerações recentes. Neste artigo, vamos entender por que reconhecer o papel das crianças como agentes de mudança social e promover o desenvolvimento da inteligência emocional são as chaves para sairmos de uma das grandes  crises de valores e identidade da História.

É estranho pensar que a infância nem sempre existiu, e que tudo o que conhecemos e adotamos na educação das crianças até hoje ainda é muito novo. Mas, para se ter uma ideia, na Idade Média, por exemplo, as crianças eram consideradas como meros seres biológicos, sem estatuto social ou autonomia (Ariès, 1981). A noção contemporânea de infância como categoria surgiu apenas nos séculos XVII e XVIII, na Modernidade. Em seguida, durante a Revolução Industrial, o crescente interesse pela infância tinha caráter apenas econômico: era necessário treinar as crianças para que se transformassem em mão-de-obra operária barata. 

De lá pra cá, surgiram muitos estudos e teorias sobre infância e educação, especialmente a partir dos anos 70, em razão das grandes mudanças no clima intelectual da época. Entretanto, na prática, avançamos pouco até hoje. Conforme o neoliberalismo se aprofunda, nos valemos cada vez mais da pobre herança  deixada pela Revolução Industrial: o principal objetivo da sociedade em relação a educação das crianças continua sendo o de transformá-las em cidadãos economicamente produtivos, mesmo que para isso tenhamos de reprimir e manipular os aspectos sociais, emocionais, culturais e até mesmo espirituais que fazem parte da constituição e da essência humanas.

Por isso, dá pra dizer que é histórica a negligência da sociedade em relação às emoções humanas e à infância, exceto nas ocasiões em que elas possam ser manipuladas para se converterem em lucro para o sistema capitalista. Eu, você, todos nós crescemos sendo doutrinados para que nos tornemos consumidores vorazes em vez de cidadãos conscientes, e como adultos, retroalimentamos esta dinâmica na educação de nossos filhos e alunos. Como resultado deste mecanismo secular de esvaziamento dos aspectos subjetivos do ser humano, como emoções, sentimentos e bem-estar, a sociedade enfrenta atualmente uma grande crise de valores, identidade e saúde física e mental, e as crianças são as maiores prejudicadas. Uma sociedade adoecida é incapaz de oferecer às novas gerações as condições necessárias para seu pleno desenvolvimento durante a infância e, consequentemente, não consegue proporcionar subsídios para que as crianças sejam cidadãos atuantes capazes de manifestar seus dons no mundo. 

Por isso, olhar para as nossas emoções e aprender como lidar com elas é um dos melhores caminhos para superarmos os desafios destes tempos e um dos grandes legados que podemos deixar para nossas crianças. Sabemos que as telas vieram para ficar, e se conseguirmos fazer um trabalho de autoconhecimento e auto regulação consistente dentro e fora do ambiente digital, os eletrônicos podem ser nossos grandes aliados para a cocriação do mundo que queremos.

Foi somente em 1990 que o conceito de Inteligência Emocional (IE) surgiu, formalizado pelos pesquisadores Peter Salovey (Universidade de Yale) e John Mayer (Universidade de New Hampshire). Inteligência emocional seria a “habilidade para controlar os sentimentos e emoções em si mesmo e nos demais, discriminar entre elas e usar estas informações para guiar as emoções e o pensamento (Mayer, DiPaolo e Salovery, 1990, pág.189). Em 1995, o psicólogo e redator científico Goleman, em seu livro best-seller Inteligência Emocional, expande o termo, atribuindo a ele habilidades cognitivas e de personalidade. Para Goleman, a IE inclui características como a capacidade de motivar a si mesmo, de perseverar no empenho apesar das frustrações, controlar os impulsos, adiar gratificações, regular os estados de ânimo, sentir empatia, confiar nos demais, etc.  Entre 1997 e 2007, o termo foi revisado e passou a ser definido como “a habilidade para perceber e valorar com exatidão a emoção; a habilidade para acessar e/ou gerar sentimentos quando estes facilitam o pensamento; a habilidade para compreender a emoção e o conhecimento emocional e a habilidade para regular as emoções que promovem o crescimento emocional e intelectual” (Mayer e Salovey, 1997/2007, p.32)

Já a educação emocional tem como foco a aprendizagem e o desenvolvimento das competências e habilidades categorizadas pela Inteligência Emocional. Estas habilidades não são um conjunto de informações genéticas estáticas e variáveis em quantidade e qualidade de pessoa para pessoa. Portanto, a educação emocional é sobre desenvolver ao máximo as potencialidades de autoconhecimento, autovalor e auto-regulação de cada indivíduo, desde a infância.

Na prática, isso significa proporcionar às crianças as ferramentas necessárias para que elas mesmas sejam capazes de construir e manter – individualmente e coletivamente – seu equilíbrio psíquico e emocional e, então, despertem em si próprias qualidades como empatia, senso crítico, respeito, cidadania, responsabilidade, paz interior, alegria e resiliência,  passando naturalmente a atuar em comunidade a partir da experimentação concreta destes valores nas suas relações e na forma como lidam com os desafios. 

Por promover saúde mental e bem-estar, a educação emocional pode ser considerada como um dos principais recursos para mitigar as atuais patologias psicológicas e neuronais que assolam a sociedade contemporânea, como depressão e ansiedade. Além disso, a educação emocional traz consigo um imenso potencial revolucionário, uma vez que as noções de autoconhecimento e autovalor proporcionam as bases para que o ser humano tenha clareza sobre seu verdadeiro papel como indivíduo e cidadão, e possa quebrar o paradigma produtivista ainda vigente, que insiste em perceber o homem, a mulher e as crianças não como seres complexos, com necessidades e dons subjetivos e espirituais, mas sim como máquinas programadas apenas para alimentar o sistema capitalista.  

Para o professor e filósofo Byung-Chul Han, autor da obra “Sociedade do Cansaço” (2015), estamos em um período de transição da Sociedade Disciplinar de Foucault, – em que o indivíduo é punido pelas instituições disciplinares caso não se comporte de acordo com a norma, – para a Sociedade do Desempenho. Neste novo modelo de sociedade, o indivíduo não é mais punido pelas instituições, e sim por si mesmo. As pessoas são levadas a acreditar que não estão produzindo o suficiente, que não são bem sucedidas o suficiente e que deveriam fazer sempre mais e melhor, desconsiderando os esforços já empreendidos e os danos à sua saúde mental e física, gerando um mecanismo de autopunição que é permanentemente abastecido pelos sentimentos de culpa, fracasso, inadequação e incompetência produzidos pela impossibilidade de corresponder a expectativas irreais impostas pela sociedade e chanceladas pelos próprios sujeitos.

De acordo com Chul Han, estes processos de mudança, que se iniciaram nos anos 70, são catalisados pelas novas tecnologias digitais, que têm, entre outras características, a capacidade de produzir o efeito distorcivo de “aceleração do tempo”, ou seja, uma sensação perene de que temos pouco tempo e muitas coisas para fazer, o que coloca o indivíduo sob condições de extrema pressão. Além disso, o pesquisador afirma que, diferentemente do que acontecia na Sociedade Moderna, em que a estratégia das disputas entre as diversas narrativas sociais e individuais estava calcada na destruição do outro, a partir de 2001, ano que marca a mudança de século e inaugura a Sociedade do Cansaço, o foco passa a ser a afirmação de si mesmo e o empreendedorismo individual.

As atividades coletivas e as iniciativas em grupos se enfraquecem, e uma cultura ainda mais narcisista e individualizada emerge. Um forte indicador desta dinâmica é a importância e o impacto das redes sociais na vida das pessoas, no mercado consumidor e na sociopolítica mundial. Para Byung-Chul Han, as doenças neurológicas e psicológicas, como a depressão, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a Síndrome de Burnout, entre outras, são sintomas da Sociedade do Cansaço.   

Diante do contexto exposto por Byung-Chul Han, fica evidente que uma das principais ferramentas para lidar com os desafios da Sociedade do Cansaço é a educação emocional. Mais do que nunca, é necessário que os indivíduos conheçam e desenvolvam, dentro e fora do mundo das telas, habilidades para trabalharem sua autoestima, perceberem e avaliarem suas emoções e limitações e aprenderem a se auto regular de modo a se tornarem menos vulneráveis à manipulação e opressão do sistema social produtivista e individualista,  e desfrutar de ambientes internos, profissionais e relacionais mais equilibrados, sustentáveis e condizentes com seus princípios e valores. 

Novamente, vale ressaltar que além de se tratar de um trabalho de prevenção e cura do adoecimento psicológico da sociedade, a educação emocional é também a chave para um futuro com mais qualidade de vida e justiça social e menos violência e punitivismo. Em se tratando das infâncias, a relevância do tema é ainda maior, uma vez que as crianças são o fruto deste sistema e estarão inseridas nele durante todo o período de suas vidas. Habilidades socioemocionais estão para a psique das crianças como anticorpos estão para o organismo: autoconhecimento, auto-regulação, autovalor e competências emocionais bem desenvolvidas são os mecanismos de defesa e imunização mais poderosos da mente e do espírito contra as doenças sociais contemporâneas.

Desenvolver estas habilidades em si mesmo e ajudar as crianças a desenvolvê-las e aplicá-las em casa e na escola é um ótimo ponto de partida para tornarmos as telas um recurso para o aprendizado. As redes sociais e os dispositivos eletrônicos têm sido vistos como vilões da nossa saúde, e apontados como culpados pelo aumento das mazelas no mundo contemporâneo. Mas, à medida em que formos adquirindo e praticando habilidades socioemocionais dentro e fora das telas, as novas tecnologias também serão transformadas e poderão se tornar elos importantes para manifestar as mudanças sociais e comportamentais que tanto desejamos e precisamos. Cada vez mais precisamos nos atentar sobre a relação dos adultos e crianças com suas emoções no mundo das telas, buscar recursos com profissionais bem intencionados em como usar e conviver com os eletrônicos de maneira mais equilibrada e também nos esforçarmos individualmente na criação de novos caminhos para transformação das novas tecnologias em grandes aliadas para a saúde e a sociedade.

REFERÊNCIAS:

 Referências bibliográficas: A construção histórica do sentimento de infância
https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/a-construcao-historica-sentimento-infancia.htm#:~:text=A%20constitui%C3%A7%C3%A3o%20do%20conceito%20inf%C3%A2ncia,incentivos%20poss%C3%ADveis%20por%20sua%20fragilidade;

A inteligência emocional no âmbito acadêmico: uma aproximação teórica e empírica http://www.uesc.br/cursos/graduacao/licenciatura/letras/nair2.pdf;

Livro Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han (2015)