Por que educar as emoções das crianças no mundo das telas?
19 de junho 2021-06-19 15:37Por que educar as emoções das crianças no mundo das telas?
Por Lídia Lino
Educar crianças para que elas sejam conscientes, felizes e responsáveis é um desafio relativamente novo para a sociedade contemporânea, embora este seja o desejo mais antigo e profundo de pais, mães e educadores das gerações recentes. Neste artigo, vamos entender por que reconhecer o papel das crianças como agentes de mudança social e promover o desenvolvimento da inteligência emocional são as chaves para sairmos de uma das grandes crises de valores e identidade da História.
É estranho pensar que a infância nem sempre existiu, e que tudo o que conhecemos e adotamos na educação das crianças até hoje ainda é muito novo. Mas, para se ter uma ideia, na Idade Média, por exemplo, as crianças eram consideradas como meros seres biológicos, sem estatuto social ou autonomia (Ariès, 1981). A noção contemporânea de infância como categoria surgiu apenas nos séculos XVII e XVIII, na Modernidade. Em seguida, durante a Revolução Industrial, o crescente interesse pela infância tinha caráter apenas econômico: era necessário treinar as crianças para que se transformassem em mão-de-obra operária barata.
De lá pra cá, surgiram muitos estudos e teorias sobre infância e educação, especialmente a partir dos anos 70, em razão das grandes mudanças no clima intelectual da época. Entretanto, na prática, avançamos pouco até hoje. Conforme o neoliberalismo se aprofunda, nos valemos cada vez mais da pobre herança deixada pela Revolução Industrial: o principal objetivo da sociedade em relação a educação das crianças continua sendo o de transformá-las em cidadãos economicamente produtivos, mesmo que para isso tenhamos de reprimir e manipular os aspectos sociais, emocionais, culturais e até mesmo espirituais que fazem parte da constituição e da essência humanas.
Por isso, dá pra dizer que é histórica a negligência da sociedade em relação às emoções humanas e à infância, exceto nas ocasiões em que elas possam ser manipuladas para se converterem em lucro para o sistema capitalista. Eu, você, todos nós crescemos sendo doutrinados para que nos tornemos consumidores vorazes em vez de cidadãos conscientes, e como adultos, retroalimentamos esta dinâmica na educação de nossos filhos e alunos. Como resultado deste mecanismo secular de esvaziamento dos aspectos subjetivos do ser humano, como emoções, sentimentos e bem-estar, a sociedade enfrenta atualmente uma grande crise de valores, identidade e saúde física e mental, e as crianças são as maiores prejudicadas. Uma sociedade adoecida é incapaz de oferecer às novas gerações as condições necessárias para seu pleno desenvolvimento durante a infância e, consequentemente, não consegue proporcionar subsídios para que as crianças sejam cidadãos atuantes capazes de manifestar seus dons no mundo.
Por isso, olhar para as nossas emoções e aprender como lidar com elas é um dos melhores caminhos para superarmos os desafios destes tempos e um dos grandes legados que podemos deixar para nossas crianças. Sabemos que as telas vieram para ficar, e se conseguirmos fazer um trabalho de autoconhecimento e auto regulação consistente dentro e fora do ambiente digital, os eletrônicos podem ser nossos grandes aliados para a cocriação do mundo que queremos.
Foi somente em 1990 que o conceito de Inteligência Emocional (IE) surgiu, formalizado pelos pesquisadores Peter Salovey (Universidade de Yale) e John Mayer (Universidade de New Hampshire). Inteligência emocional seria a “habilidade para controlar os sentimentos e emoções em si mesmo e nos demais, discriminar entre elas e usar estas informações para guiar as emoções e o pensamento (Mayer, DiPaolo e Salovery, 1990, pág.189). Em 1995, o psicólogo e redator científico Goleman, em seu livro best-seller Inteligência Emocional, expande o termo, atribuindo a ele habilidades cognitivas e de personalidade. Para Goleman, a IE inclui características como a capacidade de motivar a si mesmo, de perseverar no empenho apesar das frustrações, controlar os impulsos, adiar gratificações, regular os estados de ânimo, sentir empatia, confiar nos demais, etc. Entre 1997 e 2007, o termo foi revisado e passou a ser definido como “a habilidade para perceber e valorar com exatidão a emoção; a habilidade para acessar e/ou gerar sentimentos quando estes facilitam o pensamento; a habilidade para compreender a emoção e o conhecimento emocional e a habilidade para regular as emoções que promovem o crescimento emocional e intelectual” (Mayer e Salovey, 1997/2007, p.32)
Já a educação emocional tem como foco a aprendizagem e o desenvolvimento das competências e habilidades categorizadas pela Inteligência Emocional. Estas habilidades não são um conjunto de informações genéticas estáticas e variáveis em quantidade e qualidade de pessoa para pessoa. Portanto, a educação emocional é sobre desenvolver ao máximo as potencialidades de autoconhecimento, autovalor e auto-regulação de cada indivíduo, desde a infância.
Na prática, isso significa proporcionar às crianças as ferramentas necessárias para que elas mesmas sejam capazes de construir e manter – individualmente e coletivamente – seu equilíbrio psíquico e emocional e, então, despertem em si próprias qualidades como empatia, senso crítico, respeito, cidadania, responsabilidade, paz interior, alegria e resiliência, passando naturalmente a atuar em comunidade a partir da experimentação concreta destes valores nas suas relações e na forma como lidam com os desafios.
Por promover saúde mental e bem-estar, a educação emocional pode ser considerada como um dos principais recursos para mitigar as atuais patologias psicológicas e neuronais que assolam a sociedade contemporânea, como depressão e ansiedade. Além disso, a educação emocional traz consigo um imenso potencial revolucionário, uma vez que as noções de autoconhecimento e autovalor proporcionam as bases para que o ser humano tenha clareza sobre seu verdadeiro papel como indivíduo e cidadão, e possa quebrar o paradigma produtivista ainda vigente, que insiste em perceber o homem, a mulher e as crianças não como seres complexos, com necessidades e dons subjetivos e espirituais, mas sim como máquinas programadas apenas para alimentar o sistema capitalista.
Para o professor e filósofo Byung-Chul Han, autor da obra “Sociedade do Cansaço” (2015), estamos em um período de transição da Sociedade Disciplinar de Foucault, – em que o indivíduo é punido pelas instituições disciplinares caso não se comporte de acordo com a norma, – para a Sociedade do Desempenho. Neste novo modelo de sociedade, o indivíduo não é mais punido pelas instituições, e sim por si mesmo. As pessoas são levadas a acreditar que não estão produzindo o suficiente, que não são bem sucedidas o suficiente e que deveriam fazer sempre mais e melhor, desconsiderando os esforços já empreendidos e os danos à sua saúde mental e física, gerando um mecanismo de autopunição que é permanentemente abastecido pelos sentimentos de culpa, fracasso, inadequação e incompetência produzidos pela impossibilidade de corresponder a expectativas irreais impostas pela sociedade e chanceladas pelos próprios sujeitos.
De acordo com Chul Han, estes processos de mudança, que se iniciaram nos anos 70, são catalisados pelas novas tecnologias digitais, que têm, entre outras características, a capacidade de produzir o efeito distorcivo de “aceleração do tempo”, ou seja, uma sensação perene de que temos pouco tempo e muitas coisas para fazer, o que coloca o indivíduo sob condições de extrema pressão. Além disso, o pesquisador afirma que, diferentemente do que acontecia na Sociedade Moderna, em que a estratégia das disputas entre as diversas narrativas sociais e individuais estava calcada na destruição do outro, a partir de 2001, ano que marca a mudança de século e inaugura a Sociedade do Cansaço, o foco passa a ser a afirmação de si mesmo e o empreendedorismo individual.
As atividades coletivas e as iniciativas em grupos se enfraquecem, e uma cultura ainda mais narcisista e individualizada emerge. Um forte indicador desta dinâmica é a importância e o impacto das redes sociais na vida das pessoas, no mercado consumidor e na sociopolítica mundial. Para Byung-Chul Han, as doenças neurológicas e psicológicas, como a depressão, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a Síndrome de Burnout, entre outras, são sintomas da Sociedade do Cansaço.
Diante do contexto exposto por Byung-Chul Han, fica evidente que uma das principais ferramentas para lidar com os desafios da Sociedade do Cansaço é a educação emocional. Mais do que nunca, é necessário que os indivíduos conheçam e desenvolvam, dentro e fora do mundo das telas, habilidades para trabalharem sua autoestima, perceberem e avaliarem suas emoções e limitações e aprenderem a se auto regular de modo a se tornarem menos vulneráveis à manipulação e opressão do sistema social produtivista e individualista, e desfrutar de ambientes internos, profissionais e relacionais mais equilibrados, sustentáveis e condizentes com seus princípios e valores.
Novamente, vale ressaltar que além de se tratar de um trabalho de prevenção e cura do adoecimento psicológico da sociedade, a educação emocional é também a chave para um futuro com mais qualidade de vida e justiça social e menos violência e punitivismo. Em se tratando das infâncias, a relevância do tema é ainda maior, uma vez que as crianças são o fruto deste sistema e estarão inseridas nele durante todo o período de suas vidas. Habilidades socioemocionais estão para a psique das crianças como anticorpos estão para o organismo: autoconhecimento, auto-regulação, autovalor e competências emocionais bem desenvolvidas são os mecanismos de defesa e imunização mais poderosos da mente e do espírito contra as doenças sociais contemporâneas.
Desenvolver estas habilidades em si mesmo e ajudar as crianças a desenvolvê-las e aplicá-las em casa e na escola é um ótimo ponto de partida para tornarmos as telas um recurso para o aprendizado. As redes sociais e os dispositivos eletrônicos têm sido vistos como vilões da nossa saúde, e apontados como culpados pelo aumento das mazelas no mundo contemporâneo. Mas, à medida em que formos adquirindo e praticando habilidades socioemocionais dentro e fora das telas, as novas tecnologias também serão transformadas e poderão se tornar elos importantes para manifestar as mudanças sociais e comportamentais que tanto desejamos e precisamos. Cada vez mais precisamos nos atentar sobre a relação dos adultos e crianças com suas emoções no mundo das telas, buscar recursos com profissionais bem intencionados em como usar e conviver com os eletrônicos de maneira mais equilibrada e também nos esforçarmos individualmente na criação de novos caminhos para transformação das novas tecnologias em grandes aliadas para a saúde e a sociedade.
REFERÊNCIAS:
Referências bibliográficas: A construção histórica do sentimento de infância
https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/a-construcao-historica-sentimento-infancia.htm#:~:text=A%20constitui%C3%A7%C3%A3o%20do%20conceito%20inf%C3%A2ncia,incentivos%20poss%C3%ADveis%20por%20sua%20fragilidade;
A inteligência emocional no âmbito acadêmico: uma aproximação teórica e empírica http://www.uesc.br/cursos/graduacao/licenciatura/letras/nair2.pdf;
Livro Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han (2015)