Artigo: Do Planeta Tela ao Planeta Terra – uma jornada necessária

Artigo: Do Planeta Tela ao Planeta Terra – uma jornada necessária

Por Lídia Lino

O ambiente digital tem provocado mudanças profundas no modo de pensar, agir e sentir de adultos e crianças, e algumas habilidades cognitivas, comportamentais e emocionais importantes para a saúde mental e o convívio em sociedade estão se enfraquecendo porque os dispositivos eletrônicos, apesar de seus constantes avanços tecnológicos, não são capazes de oferecer os recursos necessários para o desenvolvimento destas competências essenciais para o equilíbrio e o bem estar na vida individual e coletiva. Porém, algumas das alternativas mais eficientes para resgatar e aprimorar os fundamentos que estão sendo esquecidos são fáceis, abundantes e acessíveis. 

Já faz algum tempo que o playground de um dos maiores condomínios do bairro São Pedro, em Belo Horizonte, tem ficado praticamente vazio aos domingos de manhã, segundo a moradora Caroline Rocha, mãe de Henrique, de 11 anos, e Luiza, de 9. “Quando os meninos eram menores, tínhamos mais costume de levá-los para brincar na área do prédio, mas com o tempo, eles foram preferindo ficar em casa por causa da TV, do tablet, do videogame. Aqui temos esta regra de que no final de semana, as telas são liberadas, e aí eles preferem ficar jogando ou conversando pela Internet. Por um lado, eu gostaria que eles estivessem convivendo mais com as crianças da idade deles, porque é saudável para eles correr, pular e gastar energia. Mas, por outro, confesso que fico mais tranquila em saber que eles estão quietinhos em casa, sem fazer bagunça e onde eu posso vê-los o tempo todo”, conta Caroline. “Eu já observava esse movimento desde antes da pandemia. Agora, com a quarentena, acho que esse comportamento das crianças vai acabar se tornando o novo normal, como dizem. Pelo que vejo com meus filhos em casa, acho difícil que mesmo depois que acabar o isolamento eles queiram descer para o pátio para brincar como faziam antes, quando eles eram bem mais novinhos”, completa a empresária.

À portas trancadas, em um canto do quarto de nove metros quadrados decorado com posters, pisca-piscas e animais de pelúcia, M.V.R., de 13 anos, passa a maior parte do dia gravando vídeos com pequenas coreografias para seus 27 mil seguidores no Tik-Tok. “Eu quero chegar aos 100 mil. Meu sonho é ser digital influencer”, diz. Em 2020, o adolescente brasileiro P.K., de 15 anos, se tornou a pessoa mais jovem do mundo a atingir a pontuação máxima no jogo Dance Dance Revolution, com a música Hyper Eurobeat. Desde julho de 2020, cerca de 50 milhões de pessoas em todo o planeta jogam “Minecraft” pela internet, sendo que 8,3 milhões o fazem todos os dias. 

Em 2017, depois de trabalharem por mais de 30 anos como professoras do Ensino Fundamental em uma escola particular, Maria Eugênia e Lúcia se aposentaram e decidiram abrir um centro de assistência pedagógica para crianças com dificuldades de aprendizagem. A iniciativa foi um sucesso quase instantâneo, e de lá para cá o negócio triplicou de tamanho. Apesar de acreditarem na excelência do trabalho que fazem, as educadoras afirmam que boa parte da demanda pelo serviço que oferecem é proveniente de um conjunto de deficiências cada vez mais comuns em crianças da era digital. “A ideia de trabalhar com assistência pedagógica surgiu porque notamos que os alunos de hoje têm muita dificuldade para escrever corretamente, compreender  e interpretar textos, estão mais desatentos e não conseguem se concentrar nas atividades, ficam entediados e desistem com facilidade dos exercícios. Muitos também não demonstram interesse em aprender, se relacionar ou se comunicar presencialmente”, explica Lúcia.

No livro A Criança Digital, os autores Gary Chapman e Arlene Pellicane afirmam que a falta de regras em relação ao uso de dispositivos eletrônicos pelas crianças e adolescentes têm provocado mudanças de comportamento que estão corroendo as relações entre pais, mães e filhos e prejudicando suas capacidades socioemocionais. “Você quer que seu filho adulto tenha todas as aptidões necessárias para relacionamentos fortes. O treinamento necessário para esses relacionamentos não está nos celulares ou tablets. Não existem aplicativos nem videogames capazes de substituir os relacionamentos pessoais com outros seres humanos. As habilidades sociais precisam ser praticadas na vida real, começando com a criança em casa.” (A Criança Digital, Editora Mundo Cristão, 1a Edição, 2020).

De acordo com os pesquisadores, o uso excessivo de telas têm provocado distúrbios nos processos de socialização das crianças, que apresentam mais dificuldades para demonstrar e receber afeto e gratidão, controlar a raiva, pedir desculpas e se comunicar. Um estudo realizado pelo National Center of Biotechnology em julho de 2014, nos Estados Unidos, aponta que a capacidade dos estadunidenses de prestar atenção diminuiu 40% nos últimos 20 anos. Para mitigar os efeitos nocivos das telas sobre as habilidades cognitivas, comportamentais e socioemocionais das crianças, os autores sugerem que, no ambiente familiar, as regras sobre os eletrônicos devem ser estabelecidas de maneira clara e cumpridas à risca, respeitando os limites máximos de tempo de tela fixados pelos órgãos competentes para cada faixa etária. Muito diálogo, envolvimento com a comunidade, atividades em conjunto e ao ar livre e bons hábitos, como leitura, esportes e hobbies também são recomendados.

Segundo os pesquisadores, o segredo para encontrar o equilíbrio no ambiente familiar entre os mundos virtual e real está na constante renovação e fortalecimento dos vínculos entre os membros da família, e isso só é possível fora das telas. Por isso, Chapman e Pellicane também convidam pais e mães a observarem como eles próprios se relacionam com os eletrônicos. “Nosso exemplo em assuntos digitais é mais importante que o que dizemos sobre o tempo diante das telas. Se nós, como pais, passamos horas a fio com aparelhos eletrônicos, seja de que tipo forem, estamos transmitindo a mensagem: ‘A vida é assim. Essa é a norma’. […] Parece injusto esperar de uma criança algo que seus pais não são capazes de fazer.” (A Criança Digital, 1a Edição, Ed. Mundo Cristão, página 223, 2020). 

Já no livro “Amar e Brincar – Fundamentos Esquecidos do Humano”, os pesquisadores Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller abordam a centralidade da emoção nas relações humanas. “Nós, humanos, existimos na linguagem, e todo ser e afazeres humanos ocorrem, portanto, no conversar – que é o resultado do entrelaçamento do emocionar com o linguajear. Do mesmo modo, afirmamos que a existência na linguagem faz com que qualquer ocupação humana aconteça como uma rede específica de conversações. Esta é definida em sua especificidade pelo emocionar, que por sua vez define as ações que nela se coordenam. […] Pensamos que a história da humanidade seguiu a trajetória do emocionar. Em especial, ela seguiu o curso dos desejos, e não o da disponibilidade dos recursos e oportunidades naturais ou a trilha das ideias, valores e símbolos.” (Amar e Brincar – Fundamentos Esquecidos do Humano, Editora Palas Athena, pág. 11, 1993).

Outro ponto importante levantado na obra é que “a criança cria seu espaço psíquico, como seu espaço relacional, ao viver na intimidade e em contato corporal com sua mãe” (o termo mãe aqui é entendido como a pessoa que cuida, e não é tido como um papel relacionado ao gênero). “Neste processo, a criança aprende o emocionar e a dinâmica relacional fundamentais, que constituirão o espaço relacional que ela gerará em sua vida. […] Nessas circunstâncias, para compreender as mudanças culturais, devemos entender as alterações históricas do emocionar humano em sua relação com o crescimento das crianças”, (Amar e Brincar – Fundamentos Esquecidos do Humano, Editora Palas Athena, pág. 12, 1993)

Levando em consideração a capacidade das telas de alterar as habilidades emocionais do ser humano (Chapman e Pellicane, 2020) e partindo da teoria de que o emocionar, ou seja, a vivência constante das emoções, é o que define as conversações e ações que regem a trajetória da humanidade (Maturana e Verden-Zoller, 1993), é possível que este seja o momento ideal para nos perguntarmos, como sociedade: “o que tem nos emocionado? Como temos nos emocionado? Quais são os desejos que movem nossas ações?”, e essas indagações também devem ser replicadas para o universo infantil. Cada vez mais, as nossas emoções e desejos, assim como as emoções e desejos das crianças têm sido mediados, controlados e programados pelas telas e para as telas.

É por meio das redes sociais que a maioria de nós consome todo tipo de conteúdo feito para nos fazer rir, chorar, inspirar, comprar e informar. É também postando e compartilhando fotos, vídeos e opiniões nessas mesmas redes que buscamos ser vistos, validados, elogiados e aceitos socialmente. Evitar frustrações e emoções negativas também é mais fácil nas redes, já que as plataformas permitem que cada usuário restrinja a interação e o acesso de outras pessoas às suas postagens, assim como ele mesmo pode optar por não acessar conteúdos de pessoas cujas opiniões, gostos pessoais, visões e valores sejam diferentes dos seus. É sabido que o famoso algoritmo, peça-chave das redes sociais, funciona dentro desta dinâmica: oferecendo ao usuário das redes mais daquilo que o emociona para provocar engajamento. Na cultura das redes sociais, viralizar, lacrar e cancelar são mais que verbos, são metas que, quando alcançadas, constroem e fortalecem a reputação do indivíduo dentro e fora das telas. E quanto mais bonitas, inteligentes, engraçadas, bem sucedidas e felizes as pessoas se parecerem, maiores as chances de terem seus posts disseminados e aprovados. Isso explica o grande empenho para produzir conteúdos politicamente corretos ou polêmicos, esteticamente perfeitos e com mensagens de rápida assimilação, geralmente associadas a memes e coreografias.

Um exemplo curioso: um vídeo nas redes sociais que mostra uma flor desabrochando gera muitos comentários, curtidas e compartilhamentos. Por outro lado, já não cultivamos mais a paciência e a sensibilidade necessárias para observar, despretensiosamente, um botão se abrir em flor quer seja em um jardim, quer seja em um vaso em cima da mesa da sala. Aos poucos, nossas emoções estão se transformando em emojis. As emoções humanas têm sido condicionadas para que nosso maior desejo seja sentir prazer a todos os momentos, e este é o mesmo mecanismo de funcionamento do vício em drogas.

Um estudo feito por pesquisadores da Free University of Berlin constatou que as interações positivas nas mídias sociais ativam a mesma área do cérebro responsável pelas sensações de prazer provocadas por relações sexuais e jogos de azar. De acordo com uma reportagem publicada pelo The Wall Street Journal sobre a pesquisa (Meshi, Tamir e Heekeren, 2017), o cérebro responde ao que psicólogos chamam de “recompensas variáveis intermitentes”: como não sabemos quando e como seremos recompensados, continuamos voltando à fonte de prazer. Este mecanismo, utilizado em cassinos, alimenta também aplicativos e jogos populares em smartphones, tablets e videogames. No artigo, o neurocientista Dar Meshi explica que plataformas como o Facebook e o Instagram, entre outras, permitem que as pessoas obtenham recompensas sociais a qualquer momento, em uma frequência e quantidade muito maior que nunca. Desta forma, o vício nas plataformas digitais, assim como o vício em drogas, influencia o comportamento do usuário e pode causar até mesmo abstinência, o que ajuda a explicar a dificuldade de as pessoas deixarem o celular de lado enquanto realizam outras atividades, como dirigir ou comer.

É crescente o número de pesquisas científicas sobre os impactos em nível mundial das plataformas digitais tanto para a saúde, quanto para os hábitos de consumo e de vida das pessoas. Embora, na maioria das vezes, os resultados destes estudos apontem para a urgência de encontrarmos formas mais equilibradas para lidar com com as telas, na prática, o que vemos é um aumento significativo tanto no número de usuários quanto na quantidade de horas que as pessoas passam em contato com as plataformas digitais. Um estudo divulgado pelo sistema de descontos online Cuponation, no segundo semestre de 2020, calculou que o número de usuários de redes sociais no Brasil cresceu 40% no mesmo ano, alcançando 141,45 milhões de pessoas ativas no país. De acordo com uma pesquisa realizada antes da pandemia, em 2019, pela empresa GlobalWebIndex, com sede em Londres, o Brasil é o segundo país onde as pessoas passam mais tempo nas redes sociais, com uma média diária de 225 minutos, perdendo apenas para as Filipinas, onde o tempo médio diário chega a 241 minutos.

Se já sabemos que reduzir o tempo de tela e nos conscientizarmos sobre os conteúdos que acessamos nas plataformas digitais é essencial para o bem estar de adultos e crianças, por que, ao contrário, estamos cada vez mais conectados? Além dos efeitos viciantes dos eletrônicos já mencionados por aqui, parte da resposta se encontra no fato de que, na atual ‘Sociedade do Cansaço’ (Byung-Chul Han, 2015), as cobranças por desempenho não são coletivas ou externas, e partem do próprio indivíduo para si mesmo, ou seja,  somos nossos próprios algozes: nos auto-motivamos, nos auto-cobramos e nos auto-punimos, e nosso conceito de trabalho e sucesso está ligado ao quanto somos capazes de nos auto-afirmar e autopromover – e as plataformas digitais são o lugar ideal para que isso aconteça. Como consequência, estamos exaustos, sem tempo e sem disposição para fazer outra coisa que não seja cuidarmos da nossa própria imagem e reputação, que nunca é considerada suficientemente boa por nós mesmos, transformando esta dinâmica em um círculo vicioso, do qual não conseguimos nos desvencilhar. O torpor provocado por este mecanismo aliado aos aspectos viciantes do mundo das telas nos coloca em um estado de alienação paralisante e, embora estejamos conscientes da necessidade de mudarmos nossos hábitos em relação aos eletrônicos, não conseguimos transformar nossas intenções em atividades práticas e mudanças na rotina para diminuir e melhorar o tempo que passamos conectados.

Essa conjuntura se torna ainda mais preocupante quando colocamos as infâncias em perspectiva, e há três fatores a serem considerados neste contexto: o primeiro deles é a centralidade da relação materno-infantil para a formação dos parâmetros da criança em relação à sua maneira de se emocionar e, consequentemente, agir no mundo. Logo, se os cuidadores passam muito tempo diante das telas e pouco tempo interagindo fisicamente com as crianças, isso acarretará mudanças culturais profundas, uma vez que afetará a forma como elas entenderão o mundo e como irão se relacionar com ele. Outro fator importante é o poder do exemplo dos pais e mães, conforme ressaltaram Chapman e Pellicane (pág 223, 2020): não é possível esperar que as crianças desenvolvam um relacionamento saudável com os eletrônicos se os próprios adultos não conseguem fazê-lo. O terceiro ponto diz respeito ao fato de que a geração mais recente de pais e mães também é a última geração que desfrutou de uma infância sem tantas telas, já que, durante os anos 70, 80 e 90, quando a maioria destes pais e mães eram crianças, não existiam redes sociais e os videogames e a internet ainda eram novidade. Isso significa que, se esta geração de pais e mães não souber valorizar e estimular a vida fora das telas e passar adiante o legado de como se vive a infância no mundo real, as próximas gerações também não saberão como fazê-lo.

Diante de tantas constatações que revelam a fragilidade do nosso atual comportamento no ambiente digital e de um prognóstico pouco animador para o futuro, fica difícil imaginar que existam possibilidades acessíveis para promover uma relação saudável entre crianças, adultos e o mundo das telas. No entanto, as respostas para esses dilemas complexos podem ser mais simples do que pensamos. Uma delas é considerar a importância de uma “Educação Audiovisual”, que de acordo com a proposta da iniciativa “O que queremos para o mundo?”, tem como objetivo repensar nossa atuação nas plataformas digitais e cocriar estratégias e alternativas que contemplem maneiras mais conscientes de utilizar os eletrônicos no dia-a-dia, aproveitando suas potencialidades para transformar o olhar e as ações de crianças e adultos nos mundos virtual e real. Um exercício prático e simples que podemos sugerir, desenvolvido pela comunidade de Educadores e Educadoras Audiovisuais “O que queremos para o mundo?”, é o de elaborar atividades artísticas sem telas com as crianças a partir do que vocês assistiram ou jogaram juntos nas telas. Já pensou em fazer, com a criança, um desenho, uma pintura, uma música, uma colagem ou até mesmo uma peça de teatro, ou com fantoches a partir do conteúdo que vocês acessaram juntos nas telas?

Referências bibliográficas:
A Criança Digital – Gary Chapman e Arlene Pellicane – Ed. Mundo Cristão, 2020.
Amar e Brincar: Fundamentos Esquecidos do Humano – Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller – Ed. Palas Athena, 1993
A Última Criança na Natureza – Richard Louv – Ed. Aquariana, 2016
Sociedade do Cansaço – Byung-Chul Han – Ed. Vozes, 2015

Artigo: https://olhardigital.com.br/2017/02/02/noticias/cientistas-descobrem-por-que-redes-sociais-sao-tao-viciantes/

Artigo: https://smnlab.msu.edu/wp-content/uploads/2017/08/Meshi_2015_TICS.pdf

Artigo: https://blogs.correiobraziliense.com.br/servidor/numero-de-usuarios-de-redes-sociais-cresce-quase-40-em-2020-e-supera-projecao/#:~:text=No%20entanto%2C%20com%20a%20chegada,um%20aumento%20de%20quase%2040%25

Artigo: https://f5.folha.uol.com.br/nerdices/2019/09/brasil-e-2o-em-ranking-de-paises-que-passam-mais-tempo-em-redes-sociais.shtml

Artigo: http://www.waldorfribeirao.org/fotos/arquivos/509131211-integracao_460_mob.pdf