Artigo: Filmando meu território
11 de julho 2021-07-11 10:33Artigo: Filmando meu território
Por Mayan Maharishi
É preciso colocar a luz, câmera e ação, sobre a imensa resistência que constituímos enquanto povo, afinal quanta beleza criamos em nossas comunidades, guetos, famílias etc. Sentimos que é importante partilhar os diferentes conhecimentos, que são profundos e sistematizados.
Existem no Brasil afora, muitos territórios que contam histórias, culturas, desafios, diversidade de saberes e fazeres. Mostrar para todo o mundo histórias de vida, experiências, curiosidades e o baú de imaginação que vive em cada criança, é uma oportunidade e uma necessidade de contar nossas memórias, realidades e ancestralidades! Para isso vamos conversar sobre estes assuntos e incentivar que crianças filmem seus territórios, além de contarmos experiências que já foram vivenciadas, para que possam conhecer. Já estamos animados para conhecer esses pequenos, grandes contadores de estórias, cineastas!
Partilhar os diferentes conhecimentos
Já manifestamos em outros diálogos do “O que queremos para o mundo?” quão importante é conhecer/difundir ou vivenciar diferentes epistemologias, ou seja, distintos modos de se pensar, viver, fazer história, produzir conhecimento, outras formas de aprender e ensinar, diferentes formas de ser no mundo.
Através dessas partilhas é possível ouvir uma história, aprender a fazer algo novo, conhecer culturas, conhecer infâncias, crenças etc. Já pensou como se faz uma farinha de mandioca desde a escolha da muda que se planta, até a colheita, seu beneficiamento e o preparo do alimento? E as brincadeiras, quais serão as brincadeiras presentes no Alto Vale Jequitinhonha, no médio e no baixo Jequitinhonha, Minas Gerais? E lá em Balbina, no Amazonas, quais são as brincadeiras? Como é o aprendizado das crianças nas diferentes comunidades rurais, nos bairros urbanos, nas vilas? E como é o conhecimento precioso dos pescadores ribeirinhos? E os saberes das aldeias? [1]
Territórios que contam histórias
Territórios contam histórias. Cada lugar produz um saber, um conhecimento único, uma interação própria, suas linguagens, suas formas de trocas e aprendizagens. Tudo isso é próprio de cada lugar, que constituem identidades e territórios. Qual sua origem? O que conta a história do seu lugar?
Os lugares contam histórias, cada território tem seu diferente bioma por exemplo, uma árvore específica do cerrado lhe conta uma história e da mata atlântica conta outra. Os formatos são diferentes, as cores outras, os frutos podem ter usos distintos e as propriedades medicinais podem ser semelhantes, com plantas de diferentes territórios. Cada rio carrega seu canto e seu encanto. Cada pássaro dispersa no ar um jeito seu de avuá!
As coisas contêm história também, um objeto pode carregar memória, sentido, afeto. Um cheiro pode despertar muita informação, nossas percepções sensoriais podem despertar lugares fantásticos visíveis e invisíveis. E partir de um objeto, lugar, território e não lugares, podemos engajar histórias que nos ajudam a melhorar nossos dias em direção ao bem viver. A imaginação também é território, território fértil para transcender limites. Há mundos imagéticos inventados e há mundos mágicos habitado pelos encantados, que nada tem de inventado, são culturas ancestrais que carregam grandes verdades sobre nosso viver sob a terra, sendo terra, transcendendo limites, limites esses sim, forjados.
Recursos tecnológicos, aproveitando seu acesso para uma atuação engajada
Em novembro de 2019 no III Fórum “O que queremos para o mundo?” [2], com o tema Pedagogias do Futuro e Educação Tecnológica, Marcus Bussey, em São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito do Serro, Minas Gerais, promoveu uma reflexão muito interessante em sua aula: Hackeando as Pedagogias do Futuro, sobre a infância e as inúmeras possibilidades que uma nova educação audiovisual podem despertar em nós e no outro, a partir de uma reprogramação dos padrões e imagens que temos do que aprendemos e de como podemos aprender e ensinar.
Bussey, defende a ideia de que somos capazes de uma atuação engajada, que utiliza a tecnologia a nosso favor, nossa tecnologia enquanto seres humanos e as tecnologias ferramentarias que temos. A grande sacada de Bussey é difundir que podemos hackear as formas de ensino-aprendizagem, nos baseando em valores neo-humanistas, aqueles que expandem sua visão de mundo para um aspecto integrado entre humanos e todos os seres vivos, entendendo-se como parte ativa e interligada. Hackear as estruturas baseadas nesses valores são com o objetivo de que nos levem a um amor pleno pelo mundo e que ele seja presente em todas as nossas ações.
Onde queremos chegar com essa reflexão? Quando falamos de registrar, a partir do filmar de seu território, estamos falando também de recursos tecnológicos. É preciso certos recursos para que seja possível uma filmagem. O que devemos compreender é que o acesso a esses recursos, sobretudo no Brasil, enfrenta muitas limitações, sofremos com falta de acesso e recursos tecnológicos caros, se comparados com a renda média de nossa população.
Enfim, há inúmeros desafios e falta de incentivo em tecnologia em espaços públicos ou na massificação desse acesso. É claro que com acesso também há outros desafios, mais relacionados com a forma de uso, pois os ambientes digitais e midiáticos habitam o universo das tecnologias de maneira perversa. É preciso compreender esses desafios e também entender que o acesso a tecnologia não é ainda para todos e todas, isso torna nosso compromisso ainda maior no que diz respeito ao uso, como disse anteriormente. Podemos assim usá-lo, já que temos acesso, de maneira engajada, caminhando rumo a um uso de impacto positivo.
Temos urgências diante das realidades que vivenciamos, “O que queremos para o mundo?” age e difunde práticas para uma educação significativa e respeitosa, que possibilita que narrativas, no plural, sejam parte do nosso dia a dia e que juntos possamos caminhar para uma prática que não seja da separação e sim de uma união pela paz e pelo amor realmente engajados nas entranhas de ações no mundo.
[3] Segundo Boaventura Souza Santos (2007) há um pensamento abissal separatistas, que enalteceu visões de mundo ocidentais, eurocêntricas, que criaram abismos em relação a culturas existentes. É nesse sentido que ele propõe a valorização de uma Ecologia de saberes, não monopolizadora e sim que enfatize as pluralidades.
Esses saberes plurais sempre foram existentes, porém submersos pelas desigualdades e desequilíbrios gerados pelo colonialismo e capitalismo. É preciso superar uma divisão histórica e estrutural arquitetada para aprisionar. Boaventura vai nos alertar sobre a divisão sul e norte global, mas ambos sempre existiram, sempre coexistiram, o que emerge atualmente é a capacidade em massa de percebermos que o “sul global” subestimado, não tem a força de um leão, mas sim de uma alcatéia inteira, uma capacidade imensurável e culturas surpreendentes que foram minadas por séculos.
“O pensamento pós-abissal pode ser sintetizado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul. Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia. A ecologia de saberes se baseia na idéia de que o conhecimento é interconhecimento.” (BOAVENTURA, 2007, P.85)
Por isso nos importamos em estimular as narrativas emergentes e expandir as tantas vozes existentes. Queremos fortalecer o direito à vida em sua total manifestação, usando nossos acessos e capacidades para a liberdade, mesmo que esta seja uma construção lenta e que pareça distante. Segundo Boaventura (2007, p.87), a utopia do interconhecimento consiste em aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios, é esse nosso engajamento no “O que queremos para o mundo?”, o que queremos fortalecer são as narrativas plurais, em que as pessoas dividam suas vivências, conhecimentos e histórias.
Experiências significativas e narrativas emergentes
[4] Algumas experiências já compartilhamos com vocês em outros textos dessa publicação em que trouxemos diversas ações realizadas no “O que queremos para o mundo?”, elas resultaram em vídeos engajados, educativos e registros de infâncias pelo mundo. Então aqui vamos trazer um novo exemplo vivenciado por mim e um grupo de educadores no contexto de um projeto chamado Vídeo Cartas entre estudantes da Licenciatura em Educação do campo.
Algumas narrativas emergentes surgiram neste projeto que realizamos no programa de extensão da Universidade Federal dos Vales dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, na Licenciatura em Educação do Campo – LEC. Coordenado pela professora Ofélia Ortega, o projeto Vídeo Cartas entre estudantes da Licenciatura em educação do campo, se tornou um projeto de grande importância na nossa comunidade educativa e nas comunidades dos estudantes de toda a licenciatura.
O Vídeo Cartas é um projeto em diálogo direto com o audiovisual e a liberdade narrativa dos estudantes, baseado em suas experiências significativas. O projeto Vídeo Cartas apresenta aos estudantes uma desmistificação no uso de recursos tecnológicos como celulares e aplicativos na produção audiovisual, incentivando o uso de recursos simples e promovendo ações de ensino aprendizagem, capacitações em relação à criação audiovisual.
Possibilita a apropriação de tecnologia e a aquisição de competências artísticas para a produção audiovisual, com diferentes utilizações, uma delas o uso como materiais didáticos contextualizados no campo, que no contexto atual tornaram-se fundamentais na formação de professores. Incentiva o registro dos territórios dos estudantes e de seus interlocutores, comunidades tradicionais e quilombolas e práticas culturais comunitárias de licenciandos em Educação do Campo na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Minas Gerais.
As vídeo cartas, são filmes de curta-metragem com duração de 5 a 10 minutos, com conteúdo selecionado e elaborado pelos estudantes com o intuito de mostrar a realidade local das comunidades. As vídeo cartas são entendidas como um produto audiovisual que socializam as visões de mundo entre os estudantes e suas comunidades, num processo dialógico que pretende mostrar tanto as problematizações da realidade como as marcas culturais que constituem a identidade dos povos do campo.
Os vídeos trazem uma rica diversidade de olhares e narrativas por meio de registros do patrimônio cultural imaterial, conhecimentos populares, questões socioambientais, da vida cotidiana no campo e da vida acadêmica dos estudantes. Os envolvidos articulam linguagem, cultura e audiovisual. Há um o canal no Youtube “Vídeo-Cartas Projeto”, vale muito a pena visitar, vocês vão conferir a diversidade de narrativas e registros que foram elaborados pelas envolvidas no projeto.
O vídeo cartas tem sido uma importante ferramenta de comunicação comunitária e de narrativas audiovisuais camponesas. Para dar um gostinho de quero mais e aguçar a curiosidade vou contar o que tem por lá: tem as crianças no desfile da escola, tem processo de fabricação de doce, tem benzedeira, tem vídeo sobre agricultura familiar, sobre cultivo de pimenta, tem educação do campo em cena, tem feitura de quitandas e muito mais. Passem lá e se inspirem nesse intercâmbio de saberes.
Hora de pegar a tecnologia e incentivar a criançada a filmar seus diferentes territórios do brincar, da imaginação, do viver, do conhecer! Filmar meu território é partilhar diferentes conhecimentos, pois territórios contam histórias. Com o uso de recursos tecnológicos, aproveitamos o acesso para uma atuação engajada, partilhamos experiências significativas e narrativas emergentes. Valorizar uma ecologia de saberes, diminuir distâncias, valorizar as infâncias e expandir as vozes existentes é o que podemos mediar e incentivar através do “O que queremos para o mundo?”.
Notas de rodapé:
[1] Assista os conteúdos a seguir e conecte-se em como podemos filmar nossos territórios:
a) Território do Brincar – YouTube
b) Waapa | VIDEOCAMP
c) Disque Quilombola | VIDEOCAMP
d) Terreiros do Brincar | VIDEOCAMP
[2] Conecte-se com as iniciativas abaixo:
a) [III Fórum OQPM?] Relato – O que queremos para o mundo?
b) Curtas – O que queremos para o mundo?
[3] Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes (openedition.org)
[4] Conheça as experiências a seguir:
a) https://www.youtube.com/c/VideoCartasProjetoUFVJM/featured
b) http://sementeia.org